A jornada de Chico
Naquele dia, Chico pensou que talvez fosse uma boa
ideia tentar os fundos do restaurante chinês de novo, pois na véspera a
incursão lhe valera fartas porções de macarrão com carne e não sentira mais
fome. Porém, agora o estômago começava a roncar, dando sinal de que era hora de
procurar alimento.
A vida de cachorro de rua não é fácil. Não há uma mão
que lhe agrade nos momentos de solidão, não existe potinho de comida à
disposição o dia todo nem cobertor para esquentar nas noites frias. Tudo
depende de si mesmo, e a cidade pode ser um mundo perigoso para um animal
desamparado.
Chico que o diga. Claro que, depois de tantos anos de
experiência, ele já sabia exatamente quando atravessar a rua, reconhecia ao
primeiro olhar sujeitos mal-encarados (desses que gostam de judiar dos bichos)
e tinha uma lista mental completa de lugares onde conseguir comida. Mas, no
passado, sofrera muito. Havia apanhado, passado fome e frio demais.
Lá foi ele rumo ao restaurante chinês. Assim que se
aproximou da porta dos fundos, um funcionário saiu do estabelecimento
carregando um grande saco de lixo preto. Havia outros cachorros no beco, na
mesma expectativa de Chico de descolar uma refeição. Um deles, também
vira-lata, mas mais baixinho e roliço do que Chico (alto e esbelto), puxou papo
enquanto o funcionário do restaurante, todo vestido de branco, acondicionava o
lixo em um monte de sacos no canto do beco.
— Vou te dizer, cara, tô torcendo pra ter uns restos de
yakisoba aí nesse bolo, adoro yakisoba!
Chico ficou meio sem entender, porque não era um
frequentador assíduo de restaurantes chineses. Vendo sua expressão nula, o
vira-lata explicou:
— Yakisoba, sabe? Aquele macarrão com coisinhas. Tinha
muito ali na região da Paulista, agora os caras não ficam mais lá, não sei o
que aconteceu.
Chico logo percebeu que comera o tal yakisoba no dia
anterior, sem saber o nome da iguaria. Concordou com a cabeça, sem tirar os
olhos do sujeito do restaurante, que finalmente largara o saco de lixo e se
retirava. Assim que ele se afastou, os cachorros do beco avançaram sobre o
monte, rasgando os sacos com os dentes e vasculhando com os focinhos seu
conteúdo.
Chico, como era mais alto, conseguiu alcançar um
embrulho mais distante, e qual não foi sua surpresa quando percebeu que, em seu
interior, havia uma foto antiga, na qual figuravam uma senhora e uma garotinha,
provavelmente avó e neta, na frente de uma casa amarela com portão baixo de
madeira. A imagem transmitia tanta paz, tanto amor entre ambas as personagens,
que os olhos de Chico se encheram de lágrimas ao pensar que ele não tinha
ninguém no mundo para compartilhar seu carinho, nenhum lar, nenhum dono que o
amasse.
De repente, porém, a comoção que ele sentia deu lugar à
estupefação: ao olhar novamente para a foto, Chico reparou em uma caixa de
correio no formato de passarinho, tão exótica que por si só já chamaria
bastante atenção. O mais incrível, no entanto, é que Chico se lembrava de ter
visto aquela caixa de correio em algum lugar! Ele tinha certeza disso, mas não
se lembrava de onde poderia ser.
Naquele momento, Chico tomou uma resolução: não
sossegaria enquanto não encontrasse a casa da foto. Com brilho nos olhos,
abocanhou-a com cuidado e saiu em disparada. O cachorro baixinho, sem entender
o que sucedera ao recém-conhecido, ainda teve tempo de gritar:
— Ei, que bicho te mordeu? Achei o yakisoba!
Mas Chico já estava longe. Partiu para o centro da
cidade, para começar sua busca. Logo percebeu que aquele não era o lugar certo,
então rumou para a Barra Funda e, dali, para a Lapa. Nesse bairro, Chico chegou
a encontrar algumas casas que lembravam a da foto, mas nenhuma delas tinha uma
caixa de correio em forma de passarinho. Além disso, ele vira a casa antes e
sentia que ainda estava distante de seu alvo.
Começou a anoitecer, e Chico precisou procurar um local
para dormir. Suas longas pernas estavam cansadas, e sua barriga roncava – só
agora se lembrava de que não havia comida nada o dia inteiro. Então, em uma
pracinha, arranjou-se embaixo de um banco e ali passou a noite.
Ao amanhecer do dia, Chico prontamente se pôs em
marcha. Após alguns passos, deparou-se com uma padaria, na qual conseguiu de
alguns clientes um pedaço de pão com manteiga, o resto de uma coxinha e, que
sorte!, um pão de queijo inteiro que caiu no chão antes que o dono desse uma
única mordida.
Bem nutrido, o cachorro sentiu disposição para seguir
viagem. Dessa vez, foi para a região de Pinheiros. No entanto, nada parecia
lembrar a casa da foto, e Chico começou a desanimar; São Paulo é uma cidade
muito grande para ser percorrida por um simples cão! Quando Chico já perdia as
esperanças, algo lhe atraiu a atenção: não era uma casa, um portão nem uma
caixinha de correio, mas, sim, um ônibus! Ao ver o letreiro do ônibus, um
estalo atingiu a mente de Chico, e de pronto ele soube onde tinha que procurar:
na Vila Mariana.
De onde estava, era uma longa caminhada até esse
bairro. Ao chegar lá, mais uma vez anoitecia, mas Chico não queria parar, desejava
encontrar o mais rápido possível a casa onde a garotinha estava com sua avó!
Ficou escuro e ele continuou a busca, obstinado. O
trânsito ficou intenso de pessoas seguindo do trabalho para casa, as luzes dos
prédios se acendiam aos poucos, e Chico imaginava as famílias reunidas à mesa,
jantando felizes... O trânsito agora diminuíra, e o cachorro não parava. A
cidade foi se aquietando, silenciando... Até que Chico não aguentou mais e
cedeu ao cansaço.
Acordou com alguém acariciando seu focinho. Onde
estava? Por um instante, esqueceu-se da jornada que o consumia há já dois dias.
Quando enfim tornou a si e abriu bem os olhos, se deparou com um rosto de
criança rechonchuda e vermelho, emoldurado por cachos loiros. Mas, que
incrível! Era a menina da foto? Ou não era? Parecia tanto...
Enquanto essa dúvida perturbava Chico, a garota gritou:
— Mãe, mãe, vem ver, tem um cachorrinho no portão de
casa!
Então, Chico ergueu a cabeça e pôde, enfim, ver: estava
diante de uma casa amarela, com portão de madeira e uma caixa de correio em
forma de passarinho! E, quando lágrimas de alegria começavam a se formar em
seus olhos, a porta principal se abriu e de dentro da casa saiu, aí sim, a
garotinha da foto, agora adulta e mãe da bela menina que encontrara Chico.
Afinal, a foto era antiga!, lembrou Chico.
E foi com tanto carinho que a mãe, a filha e o pai, que
veio logo atrás, acolheram Chico, que o cachorro mal pôde acreditar na
felicidade reservada a ele pelo destino. No entanto, era a realidade, e Chico
finalmente encontrou o lar e o amor que tanto buscara na vida.
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