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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A jornada de Chico


Naquele dia, Chico pensou que talvez fosse uma boa ideia tentar os fundos do restaurante chinês de novo, pois na véspera a incursão lhe valera fartas porções de macarrão com carne e não sentira mais fome. Porém, agora o estômago começava a roncar, dando sinal de que era hora de procurar alimento.


A vida de cachorro de rua não é fácil. Não há uma mão que lhe agrade nos momentos de solidão, não existe potinho de comida à disposição o dia todo nem cobertor para esquentar nas noites frias. Tudo depende de si mesmo, e a cidade pode ser um mundo perigoso para um animal desamparado.
Chico que o diga. Claro que, depois de tantos anos de experiência, ele já sabia exatamente quando atravessar a rua, reconhecia ao primeiro olhar sujeitos mal-encarados (desses que gostam de judiar dos bichos) e tinha uma lista mental completa de lugares onde conseguir comida. Mas, no passado, sofrera muito. Havia apanhado, passado fome e frio demais.
Lá foi ele rumo ao restaurante chinês. Assim que se aproximou da porta dos fundos, um funcionário saiu do estabelecimento carregando um grande saco de lixo preto. Havia outros cachorros no beco, na mesma expectativa de Chico de descolar uma refeição. Um deles, também vira-lata, mas mais baixinho e roliço do que Chico (alto e esbelto), puxou papo enquanto o funcionário do restaurante, todo vestido de branco, acondicionava o lixo em um monte de sacos no canto do beco.
— Vou te dizer, cara, tô torcendo pra ter uns restos de yakisoba aí nesse bolo, adoro yakisoba!
Chico ficou meio sem entender, porque não era um frequentador assíduo de restaurantes chineses. Vendo sua expressão nula, o vira-lata explicou:
— Yakisoba, sabe? Aquele macarrão com coisinhas. Tinha muito ali na região da Paulista, agora os caras não ficam mais lá, não sei o que aconteceu.
Chico logo percebeu que comera o tal yakisoba no dia anterior, sem saber o nome da iguaria. Concordou com a cabeça, sem tirar os olhos do sujeito do restaurante, que finalmente largara o saco de lixo e se retirava. Assim que ele se afastou, os cachorros do beco avançaram sobre o monte, rasgando os sacos com os dentes e vasculhando com os focinhos seu conteúdo.
Chico, como era mais alto, conseguiu alcançar um embrulho mais distante, e qual não foi sua surpresa quando percebeu que, em seu interior, havia uma foto antiga, na qual figuravam uma senhora e uma garotinha, provavelmente avó e neta, na frente de uma casa amarela com portão baixo de madeira. A imagem transmitia tanta paz, tanto amor entre ambas as personagens, que os olhos de Chico se encheram de lágrimas ao pensar que ele não tinha ninguém no mundo para compartilhar seu carinho, nenhum lar, nenhum dono que o amasse.
De repente, porém, a comoção que ele sentia deu lugar à estupefação: ao olhar novamente para a foto, Chico reparou em uma caixa de correio no formato de passarinho, tão exótica que por si só já chamaria bastante atenção. O mais incrível, no entanto, é que Chico se lembrava de ter visto aquela caixa de correio em algum lugar! Ele tinha certeza disso, mas não se lembrava de onde poderia ser.
Naquele momento, Chico tomou uma resolução: não sossegaria enquanto não encontrasse a casa da foto. Com brilho nos olhos, abocanhou-a com cuidado e saiu em disparada. O cachorro baixinho, sem entender o que sucedera ao recém-conhecido, ainda teve tempo de gritar:
— Ei, que bicho te mordeu? Achei o yakisoba!
Mas Chico já estava longe. Partiu para o centro da cidade, para começar sua busca. Logo percebeu que aquele não era o lugar certo, então rumou para a Barra Funda e, dali, para a Lapa. Nesse bairro, Chico chegou a encontrar algumas casas que lembravam a da foto, mas nenhuma delas tinha uma caixa de correio em forma de passarinho. Além disso, ele vira a casa antes e sentia que ainda estava distante de seu alvo.
Começou a anoitecer, e Chico precisou procurar um local para dormir. Suas longas pernas estavam cansadas, e sua barriga roncava – só agora se lembrava de que não havia comida nada o dia inteiro. Então, em uma pracinha, arranjou-se embaixo de um banco e ali passou a noite.
Ao amanhecer do dia, Chico prontamente se pôs em marcha. Após alguns passos, deparou-se com uma padaria, na qual conseguiu de alguns clientes um pedaço de pão com manteiga, o resto de uma coxinha e, que sorte!, um pão de queijo inteiro que caiu no chão antes que o dono desse uma única mordida.
Bem nutrido, o cachorro sentiu disposição para seguir viagem. Dessa vez, foi para a região de Pinheiros. No entanto, nada parecia lembrar a casa da foto, e Chico começou a desanimar; São Paulo é uma cidade muito grande para ser percorrida por um simples cão! Quando Chico já perdia as esperanças, algo lhe atraiu a atenção: não era uma casa, um portão nem uma caixinha de correio, mas, sim, um ônibus! Ao ver o letreiro do ônibus, um estalo atingiu a mente de Chico, e de pronto ele soube onde tinha que procurar: na Vila Mariana.
De onde estava, era uma longa caminhada até esse bairro. Ao chegar lá, mais uma vez anoitecia, mas Chico não queria parar, desejava encontrar o mais rápido possível a casa onde a garotinha estava com sua avó!
Ficou escuro e ele continuou a busca, obstinado. O trânsito ficou intenso de pessoas seguindo do trabalho para casa, as luzes dos prédios se acendiam aos poucos, e Chico imaginava as famílias reunidas à mesa, jantando felizes... O trânsito agora diminuíra, e o cachorro não parava. A cidade foi se aquietando, silenciando... Até que Chico não aguentou mais e cedeu ao cansaço.
Acordou com alguém acariciando seu focinho. Onde estava? Por um instante, esqueceu-se da jornada que o consumia há já dois dias. Quando enfim tornou a si e abriu bem os olhos, se deparou com um rosto de criança rechonchuda e vermelho, emoldurado por cachos loiros. Mas, que incrível! Era a menina da foto? Ou não era? Parecia tanto...
Enquanto essa dúvida perturbava Chico, a garota gritou:
— Mãe, mãe, vem ver, tem um cachorrinho no portão de casa!
Então, Chico ergueu a cabeça e pôde, enfim, ver: estava diante de uma casa amarela, com portão de madeira e uma caixa de correio em forma de passarinho! E, quando lágrimas de alegria começavam a se formar em seus olhos, a porta principal se abriu e de dentro da casa saiu, aí sim, a garotinha da foto, agora adulta e mãe da bela menina que encontrara Chico. Afinal, a foto era antiga!, lembrou Chico.
E foi com tanto carinho que a mãe, a filha e o pai, que veio logo atrás, acolheram Chico, que o cachorro mal pôde acreditar na felicidade reservada a ele pelo destino. No entanto, era a realidade, e Chico finalmente encontrou o lar e o amor que tanto buscara na vida.