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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A jornada de Chico


Naquele dia, Chico pensou que talvez fosse uma boa ideia tentar os fundos do restaurante chinês de novo, pois na véspera a incursão lhe valera fartas porções de macarrão com carne e não sentira mais fome. Porém, agora o estômago começava a roncar, dando sinal de que era hora de procurar alimento.


A vida de cachorro de rua não é fácil. Não há uma mão que lhe agrade nos momentos de solidão, não existe potinho de comida à disposição o dia todo nem cobertor para esquentar nas noites frias. Tudo depende de si mesmo, e a cidade pode ser um mundo perigoso para um animal desamparado.
Chico que o diga. Claro que, depois de tantos anos de experiência, ele já sabia exatamente quando atravessar a rua, reconhecia ao primeiro olhar sujeitos mal-encarados (desses que gostam de judiar dos bichos) e tinha uma lista mental completa de lugares onde conseguir comida. Mas, no passado, sofrera muito. Havia apanhado, passado fome e frio demais.
Lá foi ele rumo ao restaurante chinês. Assim que se aproximou da porta dos fundos, um funcionário saiu do estabelecimento carregando um grande saco de lixo preto. Havia outros cachorros no beco, na mesma expectativa de Chico de descolar uma refeição. Um deles, também vira-lata, mas mais baixinho e roliço do que Chico (alto e esbelto), puxou papo enquanto o funcionário do restaurante, todo vestido de branco, acondicionava o lixo em um monte de sacos no canto do beco.
— Vou te dizer, cara, tô torcendo pra ter uns restos de yakisoba aí nesse bolo, adoro yakisoba!
Chico ficou meio sem entender, porque não era um frequentador assíduo de restaurantes chineses. Vendo sua expressão nula, o vira-lata explicou:
— Yakisoba, sabe? Aquele macarrão com coisinhas. Tinha muito ali na região da Paulista, agora os caras não ficam mais lá, não sei o que aconteceu.
Chico logo percebeu que comera o tal yakisoba no dia anterior, sem saber o nome da iguaria. Concordou com a cabeça, sem tirar os olhos do sujeito do restaurante, que finalmente largara o saco de lixo e se retirava. Assim que ele se afastou, os cachorros do beco avançaram sobre o monte, rasgando os sacos com os dentes e vasculhando com os focinhos seu conteúdo.
Chico, como era mais alto, conseguiu alcançar um embrulho mais distante, e qual não foi sua surpresa quando percebeu que, em seu interior, havia uma foto antiga, na qual figuravam uma senhora e uma garotinha, provavelmente avó e neta, na frente de uma casa amarela com portão baixo de madeira. A imagem transmitia tanta paz, tanto amor entre ambas as personagens, que os olhos de Chico se encheram de lágrimas ao pensar que ele não tinha ninguém no mundo para compartilhar seu carinho, nenhum lar, nenhum dono que o amasse.
De repente, porém, a comoção que ele sentia deu lugar à estupefação: ao olhar novamente para a foto, Chico reparou em uma caixa de correio no formato de passarinho, tão exótica que por si só já chamaria bastante atenção. O mais incrível, no entanto, é que Chico se lembrava de ter visto aquela caixa de correio em algum lugar! Ele tinha certeza disso, mas não se lembrava de onde poderia ser.
Naquele momento, Chico tomou uma resolução: não sossegaria enquanto não encontrasse a casa da foto. Com brilho nos olhos, abocanhou-a com cuidado e saiu em disparada. O cachorro baixinho, sem entender o que sucedera ao recém-conhecido, ainda teve tempo de gritar:
— Ei, que bicho te mordeu? Achei o yakisoba!
Mas Chico já estava longe. Partiu para o centro da cidade, para começar sua busca. Logo percebeu que aquele não era o lugar certo, então rumou para a Barra Funda e, dali, para a Lapa. Nesse bairro, Chico chegou a encontrar algumas casas que lembravam a da foto, mas nenhuma delas tinha uma caixa de correio em forma de passarinho. Além disso, ele vira a casa antes e sentia que ainda estava distante de seu alvo.
Começou a anoitecer, e Chico precisou procurar um local para dormir. Suas longas pernas estavam cansadas, e sua barriga roncava – só agora se lembrava de que não havia comida nada o dia inteiro. Então, em uma pracinha, arranjou-se embaixo de um banco e ali passou a noite.
Ao amanhecer do dia, Chico prontamente se pôs em marcha. Após alguns passos, deparou-se com uma padaria, na qual conseguiu de alguns clientes um pedaço de pão com manteiga, o resto de uma coxinha e, que sorte!, um pão de queijo inteiro que caiu no chão antes que o dono desse uma única mordida.
Bem nutrido, o cachorro sentiu disposição para seguir viagem. Dessa vez, foi para a região de Pinheiros. No entanto, nada parecia lembrar a casa da foto, e Chico começou a desanimar; São Paulo é uma cidade muito grande para ser percorrida por um simples cão! Quando Chico já perdia as esperanças, algo lhe atraiu a atenção: não era uma casa, um portão nem uma caixinha de correio, mas, sim, um ônibus! Ao ver o letreiro do ônibus, um estalo atingiu a mente de Chico, e de pronto ele soube onde tinha que procurar: na Vila Mariana.
De onde estava, era uma longa caminhada até esse bairro. Ao chegar lá, mais uma vez anoitecia, mas Chico não queria parar, desejava encontrar o mais rápido possível a casa onde a garotinha estava com sua avó!
Ficou escuro e ele continuou a busca, obstinado. O trânsito ficou intenso de pessoas seguindo do trabalho para casa, as luzes dos prédios se acendiam aos poucos, e Chico imaginava as famílias reunidas à mesa, jantando felizes... O trânsito agora diminuíra, e o cachorro não parava. A cidade foi se aquietando, silenciando... Até que Chico não aguentou mais e cedeu ao cansaço.
Acordou com alguém acariciando seu focinho. Onde estava? Por um instante, esqueceu-se da jornada que o consumia há já dois dias. Quando enfim tornou a si e abriu bem os olhos, se deparou com um rosto de criança rechonchuda e vermelho, emoldurado por cachos loiros. Mas, que incrível! Era a menina da foto? Ou não era? Parecia tanto...
Enquanto essa dúvida perturbava Chico, a garota gritou:
— Mãe, mãe, vem ver, tem um cachorrinho no portão de casa!
Então, Chico ergueu a cabeça e pôde, enfim, ver: estava diante de uma casa amarela, com portão de madeira e uma caixa de correio em forma de passarinho! E, quando lágrimas de alegria começavam a se formar em seus olhos, a porta principal se abriu e de dentro da casa saiu, aí sim, a garotinha da foto, agora adulta e mãe da bela menina que encontrara Chico. Afinal, a foto era antiga!, lembrou Chico.
E foi com tanto carinho que a mãe, a filha e o pai, que veio logo atrás, acolheram Chico, que o cachorro mal pôde acreditar na felicidade reservada a ele pelo destino. No entanto, era a realidade, e Chico finalmente encontrou o lar e o amor que tanto buscara na vida.

segunda-feira, 23 de maio de 2011


A joaninha amarela


Ilustração: Tácia Soares


            Laura era uma joaninha alegre, amarela de bolinhas pretas. Ela vivia com sua família em uma casinha bem singela e pequenininha, como basta para uma família de joaninhas, alojados em uma folha de boldo.

            Laurinha, como era conhecida por seus amigos, passava seu dia a voar, pousando em flores bonitas e coloridas, passeando pelas árvores e alcançando até lá no alto, de onde conseguia ver o céu. Ela tinha amigos, entre eles outras joaninhas, mas costumava brincar mais com uma borboleta laranja e preta, que se chamava Helena.

            Porém, Laurinha, assim como Helena, foi crescendo, e, um belo dia, seus pais as chamaram para uma conversa, cada uma em sua casa. E, nessa conversa, as meninas foram informadas de que, a partir do mês seguinte, passariam a frequentar a escola.

            No início, elas não souberam o que pensar. Será que escola era algo bom ou ruim? Mas, seus pais, unanimemente, disseram que a escola era incrível, onde encontrariam amigos para toda a vida, conhecimento, diversão... Diante de tantas promessas, tanto Laura quanto Helena se empolgaram, e não viam a hora de começarem os estudos. Seu único pesar era se separarem, pois Laurinha iria para a escola das joaninhas, e Helena para a escola das borboletas; porém, a escola era apenas meio período, por isso teriam a tarde toda para suas brincadeiras juntas.

            Laurinha passou então aquele mês na maior expectativa. Imaginava a escola como um lugar fantástico, repleto de flores, com várias outras joaninhas se divertindo ao sol. Chegou, enfim, o dia. Sua mãe lhe entregou uma maletinha com folhas e um graveto para escrever. Havia também um lanchinho, um punhado de pólen de girassol. E seguiram para a escola.

            Durante o caminho, Laura fazia perguntas a sua mãe sobre o que iriam ensinar no primeiro dia, quem seria a professora, quantos alunos haveria por classe... Inúmeras perguntas que sua mãe respondia o melhor que podia, de forma a deixar sua filha ainda mais feliz.

            Enfim, chegaram. A escola ficava no topo de um tronco cortado. A mamãe joaninha encontrou a professora, Madame Joana, e recomendou-lhe a filha.

            - Oh, oh, claro, senhorita Laurinha, ansiosa para seu primeiro dia, querida? – perguntou a professora, sorrindo. Laurinha fez que sim com a cabeça, também com um sorriso tímido, e encolheu-se atrás da asa de sua mãe. Mas, nesse instante, fez-se ouvir o canto do senhor Grilo, que era o sinal do começo das aulas. A menina se despediu então rapidamente da mãe, com um ligeiro temor, e foi levada por Madame Joana pela mão.

            Madame Joana a acompanhou até um grupo de joaninhas em um lado do tronco, correspondente à classe do primeiro ano. Chegando lá, ela disse:

            - Vá, Laurinha! Esses são seus coleguinhas. Divirta-se!

            Laurinha foi devagarzinho se aproximando do grupo, arranjou um lugarzinho, depositou sua maletinha no chão e ficou à espera. Logo, a professora iniciou a aula:

            - Bom-dia, minhas joaninhas! Eu sou Madame Joana, e serei a professora de vocês neste primeiro ano de escola. Que felicidade! Sei que vocês devem estar muito empolgados e ansiosos para tudo o que irão aprender e conhecer. Primeiramente, vamos nos apresentar uns aos outros? Eu já lhes disse meu nome; gostaria agora de ouvir os seus. Vamos lá!

            E assim, joaninha por joaninha, cada um foi dizendo seu nome, de onde vinha, quem eram seus pais... E Madame Joana, a cada nova apresentação, abria espaço para os coleguinhas fazerem perguntas; afinal, às vezes é seu próprio vizinho que está do seu lado e você não sabe, dizia ela.

            Por fim, chegou a vez de Laurinha. Ela disse seu nome, seu endereço, quem era sua família. Quando terminou, Madame Joana a cumprimentou:

            - Seja bem-vinda, Laurinha. Alguém tem alguma pergunta para a coleguinha?

            Então, uma joaninha que havia dito chamar-se Juju, moradora das araucárias do alto da montanha, levantou a mão, e imediatamente Madame Joana aprovou o gesto:

            - Diga, diga, Juju, pode perguntar!

            E Juju, assim, perguntou a Laurinha:

            - Por que você é amarela?

            A princípio, Laura não entendeu. Como assim, amarela? Nunca pensara no caso. Mas então, olhando a seu redor, Laurinha notou que todas as outras joaninhas da classe eram vermelhas com bolinhas pretas. E só ela era amarela com bolinhas pretas! Ai, ai, ai!

            Naquele momento, o mundo acabou para Laurinha. Como nunca percebera isso! Ela era amarela! E todas as outras joaninhas eram vermelhas! Que tragédia!

Ilustração: Guilherme Arruda


            A menina nem conseguiu prestar atenção às palavras de Madame Joana, que explicou que todas as joaninhas são diferentes de alguma maneira, e ao mesmo tempo são todas joaninhas, não importando serem vermelhas ou amarelas. Para ela, tudo de mais importante no momento era justamente sua casca amarela.

            O dia foi uma tristeza para Laurinha. Apesar de suas colegas joaninhas serem simpáticas, nada tirava de sua cabeça aquela diferença intransponível.

            Chegou em casa arrasada. Seus pais não entenderam nada, e pensaram que eram apenas os efeitos de uma mudança brusca em sua vida. Mas era mais que isso. Laurinha, depois do almoço, voou para o alto de uma árvore e chorou escondida. Chorou por muito tempo, sem esperanças.

            Até que, de repente, alguém lhe cutucou o ombro. Laurinha se virou assustada, e viu um pássaro todo preto, com o bico branco, diferente, como nunca havia visto antes.

            - Olá! – disse o pássaro. – Você parece bem triste. Posso ajudar?

            - Buáááá!!! – respondeu Laurinha. O pássaro ficou assustado.

            - Menina, por que chora assim? O dia está tão lindo, veja o céu, como está azul. Não vale a pena chorar num dia desses!

            Mas a joaninha estava inconsolável. O pássaro tentou mais uma vez:

            - Vamos, vamos, me diga então qual o problema! Tenho certeza de que posso ajudá-la. Você brigou com seu irmão, é isso? Ou fez uma travessura e seus pais a colocaram de castigo?

            A tudo Laurinha fazia que não com a cabeça. O pássaro, quase desistindo, suplicou:

            - Mas então, por favor, minha joaninha, me diga qual o motivo que tanto a faz chorar!

            E Laura, percebendo que o pássaro realmente procurava consolá-la, confiou nele e confessou:

            - Eu choro, senhor Pássaro, porque todas as joaninhas de minha classe são vermelhas com bolinhas pretas. E eu... Eu sou... Amarela! – e desandou a chorar novamente.

            O pássaro ficou por um instante quieto, apenas dando tapinhas de consolo nas costas da joaninha. Passados alguns minutos, tornou a falar:

            - Minha querida, qual seu nome, mesmo?

            - Laurinha... – respondeu ela, entre soluços.

            - Pois bem, Laurinha. Minha querida Laurinha, você sabe o que eu sou?

            A joaninha parou de chorar um momento, pega de surpresa. Realmente, ela, que tanto andava por aí e conhecia todos os animais, não sabia dizer que pássaro era seu novo amigo.

            - Não – respondeu ela, em um fiapo de voz.

            - Pois é. Você não sabe. E, no entanto, já viu inúmeros outros pássaros iguais a mim. Eu, minha querida joaninha amarela, sou um corvo. Um corvo com o bico branco.

            Laurinha ficou chocada. Corvo com o bico branco? Nunca vira isso antes! Que estranho! Como assim? Corvos eram todos pretos, até o bico. Que história era essa de bico branco?

            Nesse momento, o pássaro começou a rir, pois percebia a confusão de Laurinha.

            - É, aposto que você nunca ouviu falar em corvos de bicos brancos, certo, Laurinha? Mas é isso que sou, e meu nome é Cacá. E gostaria de levá-la a um lugar muito legal, do qual eu tenho certeza que irá gostar. Concorda? Não é longe.

            Laurinha ficou um pouco desconfiada, mas concordou. Cacá deu impulso e saiu voando, e a joaninha foi atrás, procurando acompanhar o voo rápido do corvo.

            Os dois voaram por entre as árvores, desviaram de muitos galhos, cipós, folhas. Passaram até por cima de um rio. De repente, Cacá começou a diminuir a velocidade e a descer. Desceu, desceu, até que pousou no chão, e olhou para trás para ver se Laurinha estava em seu encalço. Logo depois ela pousou com suas patinhas próximo ao corvo.

            - Chegamos, Laurinha. – E, mostrando um espaço circular entre algumas pedras, aparentemente dispostas propositalmente ali: – Este é o Clube dos Amigos.

            A joaninha olhou para aquele círculo e não entendeu nada. Clube dos Amigos? Mas Cacá a interrompeu:

            - Aposto que você está imaginando, se este é o Clube dos Amigos, onde estão os amigos? Mas eu te digo, você não perde por esperar.

            Como se Cacá tivesse pronunciado a palavra mágica, um farfalhar de folhas se fez ouvir, e um vulto cinza se desenhou por trás dos arbustos. Laurinha apertou os olhos, tentando enxergar o que era, e viu sair de lá, aos poucos tomando forma, uma raposa. Uma raposa cinza.

            - Olá, Pedro. Tudo bem? – cumprimentou-a Cacá.

            - Olá, Cacá. Como vai? – respondeu a raposa, mal tomando conhecimento de Laurinha. Mas Cacá logo a fez notar.

            - Pedro, gostaria que conhecesse Laurinha, a joaninha amarela, nossa nova integrante. Laurinha, esse é Pedro, a raposa cinza.

            Laurinha lançou um olhar de medo em direção a Pedro. Mas a raposa foi tão simpática em sua resposta, que ela perdeu qualquer reserva.

            - Olá, Laurinha, seja bem-vinda!

            - Obrigada... – respondeu a joaninha timidamente. Cacá continuou a conversa:

            - E onde está Clara? Ela já deveria estar aqui.

            Nesse instante ouviram uma voz vinda do alto:

            - Estou aqui, Cacá, que impaciência!

            Baixando de folha em folha, surgiu no círculo uma lagarta branca.

            - Eis-me! – disse ela, dando risada. E, reparando imediatamente em Laurinha: - Oh, mas o que temos aqui? Uma nova integrante?

            - Sim, - respondeu Cacá – é Laurinha, nossa mais nova amiga.

            - Seja bem-vinda, Laurinha! Você vai se divertir bastante em nosso grupo!

            A joaninha, diante de acolhida tão amigável, foi se soltando aos poucos. Tomou coragem para fazer uma pergunta.

            - Já estão todos os integrantes do grupo aqui?

            - Ainda não! – respondeu Clara. – Falta mais uma de nossas amigas, Lúcia. Ela sempre chega atrasada...

            E aí ouviram um rugido assustador, que arrepiou as antenas de Laurinha. Ela já se preparava para voar para longe, a se proteger, quando Cacá disse:

            - Ah, aí está ela!

            E, no instante em que falou, uma grande pantera negra surgiu no círculo, escura como a noite.

            - Grauurrrrr!!!! – fez ela, a se espreguiçar. – Desculpem-me, meus amigos, mas estava tirando um cochilo e perdi a hora. Como estão?

            Todos responderam que estavam bem, e mais uma vez Laurinha foi apresentada ao último membro do grupo. Agora que o Clube estava completo, a joaninha perguntou:

            - Mas, afinal, para quê serve este clube?

            - Este clube, querida joaninha, - respondeu Cacá, o mais falante do grupo – foi criado por bichos que se sentiam diferentes dos outros por algum motivo, e precisavam de companhias que não os fizessem se sentir estranhos. Eu comecei o grupo com Clara, e aos poucos os demais foram se juntando a nós.

            “Você não percebeu, desde o início, que cada um de nós tem uma característica peculiar? Eu sou um corvo, mas não um simples corvo: sou um corvo com o bico branco! Quer coisa mais peculiar que isso? Pedro, enquanto a maioria das raposas é vermelha... É uma raposa cinza! Clara também, quantas lagartas brancas você já viu na vida? Eu, até encontrá-la, só conhecia lagartas verdes. E Lúcia? Em meio a tantas onças pintadas, ela nasce uma pantera inteira preta!”

            - Sim, - concordou Lúcia – sem nem ao menos uma pinta...

            - Exatamente – completou Clara. – A partir de então, fizemos de nossas diferenças um ponto em comum, e nos reunimos aqui.

            - Mas, afinal, o que vocês fazem aqui? – perguntou Laurinha, ainda sem entender muito bem.

            Cacá, tirando algo de trás de algumas moitas, respondeu:

            - Nós fazemos... – e, puxando um violão – Música!

            Laurinha arregalou os olhos. Logo, cada um dos membros tinha um instrumento musical em seu poder. Clara tinha uma flauta; Pedro, um trombone; Lúcia segurava um bongô e Cacá tocava o violão.

Ilustração: Tácia Soares


            - Que legal! – gritou a joaninha, feliz de verdade. – E qual vai ser meu instrumento?

            Cacá deu uma risadinha e disse:

            - Bem, por sorte eu guardo alguns instrumentos extras aqui. Vamos ver... Que tal... O teclado?

            - Isso! – respondeu Laurinha, batendo palmas com as patinhas.

            E todo mundo começou a tocar ao mesmo tempo, fazendo a maior algazarra, dando risada de felicidade. Após um tempo, no entanto, Cacá pôs ordem na coisa:

            - Calma, calma, pessoal, vamos organizar essa banda.

            E o corvo começou a ensinar os preceitos básicos de cada instrumento; aparentemente, ele era um grande musicista.

            No fim daquele dia, Laurinha voltou para casa em outro estado de espírito. No dia seguinte, ela foi à escola e não sofreu tanto, e assim foi se passando o tempo.

            Fazia talvez duas semanas que Laurinha estava na escola, quando a professora deu o recado de que haveria a festa da primavera, e que a escola procurava uma banda para tocar na festa. Laurinha logo teve um estalo. No final da aula, a joaninha foi conversar com a professora, mas ninguém ouviu o que ela disse.

            Chegou o dia da festa. Havia um palco montado no tronco cortado onde funcionava a escola, que estava enfeitada com folhas e flores, criando um clima de floresta na primavera.

            Então, quando todos os convidados haviam chegado, incluindo as famílias e amigos de fora da escola dos alunos, Madame Joana pegou o microfone e anunciou:

            - Senhoras e senhores, para dar início a nossa Festa da Primavera eu anuncio a banda Clube dos Amigos!

            No palco, surgiram todos os integrantes do Clube dos Amigos, cada um com seus respectivos instrumentos. E lá estava Laurinha, com seu teclado, tocando feliz da vida!

Ilustração: Guilherme Arruda


            Todos acharam a banda o máximo e unanimemente consideraram que seus integrantes tocavam muito bem seus instrumentos.

            Foram apresentadas algumas músicas, e então os músicos fizeram um intervalo para descansar. Assim que Laurinha desceu do palco, todos os seus companheiros de classe vieram cumprimentá-la por seu grande talento no teclado. E, naquele momento, Laurinha nem se lembrava de ser amarela, vermelha, verde, roxa...  

            E foi depois do fim da festa, já em sua casa, que a joaninha percebeu que, afinal, ninguém nunca tivera nenhum problema com sua cor. Apenas a achavam diferente; foi ela mesma que, desde o princípio, tomou aquilo como algo negativo. Mas não mais!

            A partir dessa reviravolta, Laurinha passou a adorar a escola. Seus colegas de classe, que antes não passavam disso, se tornaram seus grandes amigos. Quando chegou o período de férias, a joaninha sentiu aquela saudade gostosa; ainda bem que não deu tempo de se transformar em tristeza, pois Laurinha pôde então reencontrar sua amiga Helena, a borboleta, a qual mal vira durante a correria do ano letivo.

            Durante as férias, as amigas mataram a saudade uma da outra. Mas logo o tempo passou, e as aulas retornaram.

            Laurinha foi feliz para a escola. De início, houve todo aquele ritual de primeiro dia, amigos se reencontrando, classes desorganizadas, novos alunos perdidos. Um desses veio parar justamente na classe de Laurinha, um joaninho que se mudara para a região havia pouco tempo, e começava agora a frequentar as aulas. Ele era inteirinho preto, com bolinhas brancas...

            Laurinha não perdeu tempo. Sentou logo ao lado do menino e, antes que ele pudesse pensar em se sentir mal por ser diferente, a joaninha mostrou como, na verdade, o que nos faz diferentes são nossas atitudes, e de forma nenhuma isso é um problema.

quarta-feira, 20 de abril de 2011


O jardineiro das montanhas


Ilustração: Tácia Soares

As férias de Miguel começavam ali, naquele carro apinhado de malas, bolsas, brinquedos e migalhas das guloseimas que sua mãe lhe dava quando o menino se entediava. Estavam indo para a casa de sua tia, a cerca de, segundo Miguel, muitos e muitos quilômetros de onde moravam.
            Já haviam passado as férias lá antes, mas, nos últimos anos, era sempre sua tia quem se deslocava para a capital. Agora, Miguel mal se lembrava da cidadezinha para onde se dirigiam. De qualquer forma, estava ansioso por chegarem logo, para reencontrar sua prima Marília. As brincadeiras entre os dois sempre eram diversão garantida.
            Durante o caminho, seu pai, dirigindo, acompanhava a música que tocava no rádio baixinho, enquanto sua mãe seguia falando, imaginando como seriam os dias que passariam na casa de sua irmã. Miguel, no banco de trás, após um tempo, já havia brincado com todas as opções de entretenimento apresentadas por sua mãe, sua barriga estava cheia e não sabia mais o que fazer. De tanto atormentá-la com perguntas como “Falta muito para chegar?” ou “Ainda está muito longe?”, sua mãe lhe recomendou: “Aprecie a paisagem, Miguel!”.
            Aí estava algo que Miguel não pensara em fazer antes, e achou que talvez fosse interessante tentar.
A estrada seguia por uma região montanhosa, cortando os vales acompanhada de grandes morros ao seu redor. Era realmente uma paisagem bonita, e Miguel ficou surpreso com a quantidade de coisas que poderia observar de sua posição privilegiada pela janela do carro.
Como estavam longe da capital, não havia mais grande movimento na rodovia, e a família viajava tranquila, apenas seguindo o trajeto.
O sol brilhava no céu azul, com apenas uma ou duas nuvens passeando, mas não chegava a fazer calor. Era primavera, e as montanhas estavam cobertas de verde. A vegetação por ali, porém, não era tão espessa. Não havia árvores altas, pelo menos na margem da estrada; apenas arbustos e flores, inúmeras flores.
Miguel ficou encantado com a quantidade e diversidade das flores. Havia tantos tipos que o menino não sabia classificar, tantas cores! Elas pintavam as montanhas, pequenos pontos coloridos na grama verde. Como era possível que elas nascessem ali, de modo tão harmonioso? Elas eram tão diferentes, que pareciam escolhidas a dedo. O garoto não se conformava.
- Mãe?
- Sim, Miguel?
- Por que há tantas flores nas montanhas?
- Ora, meu filho, é primavera; as flores surgem quando acaba o inverno. Essa é uma região com um clima ótimo, e qualquer flor cresce bem por aqui.
- Mas, quem planta as flores, mãe?
Dessa vez, sua mãe começou a rir, assim como seu pai. Ela respondeu:
- Miguel, ninguém planta as flores! Elas nascem espontaneamente, conforme a natureza mandar! – E, ainda rindo – Onde já se viu? Quem seria capaz de encher todas essas montanhas com flores, menino?
E seus pais continuaram a conversa entre eles, às vezes ainda rindo das ideias originais que seu filho tinha.
Porém, Miguel ficou com o assunto na cabeça. Não conseguia admitir que todas aquelas flores haviam nascido espontaneamente. Ele sabia que a natureza era perfeita; mas, em sua opinião, aquelas montanhas estavam decoradas demais para serem obra do acaso.
Durante o resto da viagem, para surpresa de seus pais, o garoto permaneceu quieto, sem atormentá-los com perguntas de qualquer tipo. E, para Miguel, o tempo passou rápido, a ponto de ele quase não se dar conta de que estavam deixando a estrada e entrando na cidade.
A cidade era bem desenvolvida, apesar de pequena. Enclausurada no meio das montanhas, possuía uma vista incrível, pela qual recebia muitos turistas durante o ano, principalmente nas férias. A casa da tia de Miguel ficava no sopé de uma dessas montanhas, coisa comum no local. Uma das maiores distrações de Miguel e Marília era subir até o topo da colina e olhar a cidade de lá, de onde as casas pareciam de brinquedo.
A noite se aproximava quando estacionaram o carro na entrada da casa da tia Luísa. Ela, acompanhada do marido, o tio Marcos, vieram logo dar as boas-vindas aos visitantes. Foi uma recepção calorosa, pois havia quase um ano que não se viam. Tia Luísa veio cumprimentar Miguel, e o garoto retribuiu seus afagos, mas sua atenção estava em outro lugar.
Encostada em uma parede próxima à porta de entrada da casa, com o rosto escondido pela timidez, estava uma menina de seus oito anos, com cabelos castanhos lisos na altura dos ombros. Ela usava um conjunto de short e camiseta rosa e branco e estava descalça, o sinal de maior liberdade em uma criança. Foi necessário que seu pai a chamasse para ir falar oi ao primo Miguel. Ela veio, olhando para baixo, e deu um abraço no primo. Dali, os dois já saíram correndo pelo quintal, pulando as pedras de decoração que formavam um caminho entre as plantas. As crianças são assim; em um segundo, toda a estranheza de se ficar um bom tempo sem falar com outra pessoa se desvanece, como se ainda ontem estivessem juntos a brincar.
Naquela noite, Miguel não aguentou muito, porém. Cansado da viagem, o garoto acabou cedendo mais cedo do que gostaria, e foi carregado por seu pai até o quarto onde iria dormir.
Ele acordou de manhã com um sol agradável tocando seu rosto, um sol suave e quente que lhe incentivou a pular da cama e sair à procura de Marília. A menina estava no jardim, brincando com uma boneca. Porém, ao chegar ao jardim, Miguel ficou deslumbrado por outra coisa: a montanha. Havia ali, também, muitas flores alegrando a paisagem. O garoto correu para a prima.
- Marília, você já notou as flores que nascem nas encostas das montanhas?
- As flores? – perguntou Marília, um pouco surpresa, - Sim, notei. Às vezes subo a montanha e pego algumas, para dar de presente a minha mãe. Por quê?
- Eu te explico – disse Miguel, com o ar de entendido que os garotos assumem ao ensinarem algo a uma menina, - Quando estávamos vindo para cá, fiquei pensando sobre essas flores. Como pode ser que elas nasçam assim, tão perfeitamente nas encostas das montanhas? Você consegue acreditar nisso?
Marília parecia não estar entendendo direito o que o primo estava dizendo.
- Acreditar no quê, Miguel?
- Que as flores nasçam espontaneamente!
- Mas, de que outra forma elas nasceriam? – insistiu a menina.
- Ora bolas! Alguém as planta!
Marília hesitou por um instante.
- Alguém planta as flores que nascem nas montanhas? – confirmou ela.
- Sim! Claro! Só pode ser! – gritou Miguel.
- Hmmm...
Diante do ar de dúvida da prima, Miguel tomou uma decisão:
- Eu acho que nós deveríamos tirar essa história a limpo.
- Como?
Miguel, olhando para o topo da colina, respondeu:
- Vamos fazer uma excursão de reconhecimento na colina. Vamos descobrir quem é o responsável por toda essa decoração!
Marília, apesar de ainda um pouco cética em relação ao assunto, começou a gostar da ideia. Afinal, uma excursão pela montanha lhe parecia bem empolgante.
- Ok, vamos! – aceitou ela.
- Vamos! – gritou feliz Miguel. – Precisamos nos preparar.
Miguel correu até sua bagagem e pegou uma mochila, onde enfiou vários objetos que ele julgou imprescindíveis para uma expedição montanhosa: uma lanterna, equipamento indispensável a qualquer garoto; um boné; um elástico; barrinhas de chocolate e, claro, alguns utensílios de jardinagem. Fechou tudo na mochila e partiu de encontro ao desconhecido.
- Vamos, Marília!
E Marília foi atrás.
Havia um portãozinho no fundo do jardim com saída direta para o sopé da montanha. Os dois saíram pelo portão e começaram a subir. Seus pais, acostumados a vê-los no topo da colina admirando a cidade, nem se deram conta da grande expedição posta em prática.
Marília e Miguel chegaram, de fato, até o topo da colina, de onde olharam para trás e viram as casinhas em miniatura. Então, pela primeira vez, voltaram seus rostos para os vales das montanhas e, dando as costas à cidade, iniciaram a caminhada pelo outro lado da colina.
Poucos passos depois, Miguel comentou:
- Veja quantas flores por aqui! Há flores amarelas, vermelhas, brancas, azuis! Grandes, pequenas, redondas, espetadas! Tenho certeza, Marília, estamos na pista certa. Vamos descobrir quem é o dono deste jardim todo!
Realmente, conforme se afastavam da cidade, a quantidade de flores aumentava, como se fossem um tesouro escondido, à vista apenas daqueles que se aventuravam por terrenos mais reservados. Marília sentia vontade de colhê-las, mas as flores eram tão belas no chão, vivas, que a menina apenas apreciava o espetáculo.
De repente, os garotos viram um movimento por perto, como se alguém estivesse cavoucando a terra.
- Marília, venha, algo está acontecendo ali! – gritou Miguel, empolgado. Os dois correram naquela direção. Quando foram chegando perto, diminuíram o passo, para não assustar quem quer que fosse. Então, viram pequenas quantidades de terra sendo jogadas para cima, e Miguel imediatamente lançou a Marília um olhar de triunfo, querendo dizer “Eu sabia!”. Devagarzinho, se aproximaram mais ainda.
Mas, quando conseguiram um ângulo de visão melhor, Miguel ficou decepcionado. Era apenas um coelho fazendo sua toca!
- Essa não! – disse ele, contrariado. – Quem diria... Uma pista falsa! Mas, vamos continuar nossa missão. E continuaram a caminhada.
Andar pelos vales das montanhas era uma atividade extremamente agradável. Coberto apenas por um capim alto e fino, o solo era estável e regular, tornando os passos fáceis e firmes. Marília caminhava com os braços ligeiramente afastados do corpo, com as mãos abertas, acariciando o capim com seus dedos finos.
- Miguel, - perguntou ela, após um longo período em que os dois apenas andavam, sem conversar – será mesmo que vamos encontrar alguma coisa neste nosso passeio?
- Claro, - respondeu Miguel, com convicção, - é só seguirmos em frente!
Porém, após muito avançarem por entre as montanhas, os garotos ainda não haviam encontrado nada. Sentiam-se cansados e com fome. Por isso, sentaram-se em algumas pedras grandes e comeram os chocolates de Miguel. Havia, próximas a eles, várias florzinhas lilás, delicadas como borboletas. Já devia ser mais de meio-dia, e a busca sem resultados começava a ser frustrante. Miguel, olhando o rosto desesperançoso de Marília, disse:
- Talvez seja melhor nós voltarmos, Marília. Andamos muito, estamos correndo o risco de nos perder. Não podemos seguir em frente por mais tempo, caso contrário seremos surpreendidos pela noite e estaremos perdidos. Vamos voltar!
Porém, essas frases foram ditas com tanto pesar, que Marília se compadeceu de seu primo. A menina, então, falou:
- É verdade, Miguel, já avançamos bastante, e sem resultados. Mas vamos seguir um pouco mais; meia hora, que seja. Quem sabe? – disse ela, com um sorriso. Miguel sorriu também, e os dois se puseram a andar.
Miguel possuía um relógio de pulso, digital, vermelho, o qual havia ganhado de seu pai. Passada meia hora, o garoto lançou a Marília um olhar significativo. A menina entendeu o recado, e encolheu os ombros. Nesse momento, porém, ela reparou em algo diferente no chão. Havia, ali, algumas flores caídas, soltas, com as raízes expostas, como se tivessem acabado de ser arrancadas, ou estivessem à espera de que alguém as plantasse.
- Veja, Miguel, essas flores! – gritou ela.
Miguel imediatamente foi até as flores e segurou-as nas mãos, analisando-as.
- Parecem ter sido arrancadas agora! Ainda estão vivas, mas não por muito tempo. Vamos, Marília, me ajude! – e, retirando da mochila os utensílios de jardinagem, começou a cavar buracos na terra.
Eram cerca de seis ou sete tulipas, vermelhas e amarelas. Suas raízes eram relativamente longas, e Miguel e Marília cavaram buracos fundos o suficiente para não amassá-las. Cuidadosamente, dispuseram cada uma das flores em seus respectivos buracos, tampando-os depois. Por último, Miguel retirou da mochila sua própria garrafa de água e regou o canteiro.
Eles se levantaram, então, e apreciaram sua obra. As tulipas estavam ali, altivas, alegres. Era uma pequena contribuição de Miguel e Marília à paisagem das montanhas. Marília olhou para o primo e disse:
- Bem, acho que agora podemos ir!
- Sim, tem razão. Vamos embora – concordou Miguel.
Juntaram todas as coisas e começaram o caminho de volta. Nesse instante, no entanto, ouviram uma voz logo a suas costas:
- Ei! Garotos! Já acabaram o serviço?
Marília e Miguel, surpresos, viraram-se. Então, depararam-se com a figura de um senhor já bem velhinho, magro, com os cabelos brancos saindo de baixo de um chapéu surrado, marrom. Suas roupas também eram surradas e, assim como suas botinas, estavam sujas de terra. Os dois garotos, pasmos, não sabiam o que dizer.
- E então? – continuou o senhor, - Não vão me ajudar mais? Ainda há muitas tulipas a serem plantadas, e eu nem comecei o trabalho com as margaridas!
Marília finalmente conseguiu articular uma pergunta:
- Quem é o senhor?
- Eu – respondeu o velho, - sou o jardineiro das montanhas. Quem mais eu poderia ser? – e um breve sorriso se esboçou em seu rosto.
Miguel parecia encantado.
- Então é o senhor quem planta todas essas flores? – disse.
- Sim, sou eu. E levo muito tempo neste trabalho. Forrar todas essas montanhas com flores não é tarefa fácil. Existem inúmeros tipos, inúmeras combinações a se fazer. E eu trabalho todos os dias, plantando, podando, regando. É o trabalho de uma vida, meus amigos. E, por isso, não dispenso ajuda quando esta se apresenta. Então, vamos continuar?
Os dois imediatamente saíram atrás do velho, que começou a subir a colina em que estavam. Dali, viram uma carriola, na qual descansavam várias flores, prontas para serem plantadas.
- Vamos até aquelas flores do campo amarelas. Vou plantar ali alguns narcisos.
Miguel e Marília ajudaram-no a cavar os buracos. O jardineiro dispunha as flores com delicadeza, com o cuidado de um pai. Dos narcisos, passaram para as gérberas; das gérberas para os lírios, dos lírios para as violetas... Miguel via seus pensamentos se tornarem realidade. Aos poucos, aquelas encostas das montanhas iam mudando de cara conforme os três seguiam plantando as flores; eram como pintores adicionando tinta a um quadro, transformando a paisagem.


Ilustração: Tácia Soares


Passou-se um longo tempo, até que a carriola ficou vazia de flores. Miguel, Marília e o velho olharam a sua volta e apreciaram o resultado de seu trabalho.
Porém, Marília também olhou para o céu e notou que o azul se tornava mais escuro. A noite chegava.
- Miguel! Já é quase noite! Como faremos, agora, para retornar para casa? Nem sabemos onde estamos, apenas sabemos que há um longo caminho a percorrermos...
Miguel fez uma expressão apreensiva. No entanto, antes que pudesse responder qualquer coisa a Marília, o jardineiro falou:
- Não se preocupem, garotos. Vocês me ajudaram em meu trabalho; agora, está na hora de eu lhes ajudar. E o velho, então, dispôs-se a andar, como se soubesse o caminho da casa da tia Luísa, como se nem precisasse enxergar e apenas sentisse o chão com o toque de seus pés.
No trajeto, dezenas de perguntas se formavam na cabeça de Miguel. Não podendo resistir à curiosidade, ele disse:
- Quando o senhor começou este trabalho?
- Há muitos anos, garoto. Desde minha infância. É, como eu disse, o trabalho de uma vida.
- Mas, o senhor mora aqui nas montanhas? O senhor tem uma casa? – perguntou Marília.
- Tenho, tenho uma casa. Minha casa fica nas montanhas. Porém, ninguém sabe onde fica. As pessoas não se dispõem a vagar por aí pelos vales, não importa quão floridos eles sejam. Essa é uma paisagem geralmente apreciada de longe. E, além do mais, minha casa é tão pequena que poucos conseguiriam encontrá-la no meio de tanto capim.
- Mas, será que, se nós quiséssemos, poderíamos visitá-lo algum dia? – perguntou Miguel, hesitante. Marília olhou para o jardineiro, ansiosa pela resposta.
- Sim, vocês podem me visitar – respondeu o velho. – E nem precisam ir até minha casa. Basta andarem por aí, pelos campos, pelas flores, que nós nos encontraremos.
Um lampejo de alegria iluminou o rosto de Miguel e Marília. Logo depois, porém, algo fez Miguel ficar sério e pensativo. Olhando adiante, o garoto pôde distinguir as luzes da cidade; estavam chegando. Por mais alguns instantes, todos se mantiveram em silêncio, vendo os pontos de luz ficarem cada vez maiores. Finalmente, puderam distinguir o formato das casas e Miguel percebeu que sua jornada estava acabando. Alcançaram o topo da última colina, de onde enxergavam as sombras das árvores no jardim de tia Luísa.
- Bem, garotos, parece que vocês estão entregues. Obrigado pela ajuda!
- Obrigado! – retribuíram os dois. Miguel, então, disse:
- Senhor, posso lhe fazer uma última pergunta?
- Claro, mas seja breve! Tenho que ir também para minha casa, e me preparar para mais um dia de plantio amanhã!
- Tudo bem. – concordou Miguel, continuando - Só gostaria de saber por que o senhor começou a fazer isso... a plantar as flores, eu digo.
O velho jardineiro encarou Miguel e Marília por uns instantes. Depois, virou as costas para a cidade, da mesma maneira que os dois meninos haviam feito mais cedo naquele dia, e olhou para os campos das montanhas. Finalmente, respondeu:
- Porque, garotos, a natureza é perfeita e dá conta de tudo. Porém, o trabalho é duro e, por isso, ela não dispensa ajuda, quando esta se apresenta.
E, dizendo isso, o velho jardineiro desceu a colina, por entre as flores de seu jardim.