O jardineiro das montanhas
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Ilustração: Tácia Soares |
As férias de Miguel começavam ali, naquele carro apinhado de malas, bolsas, brinquedos e migalhas das guloseimas que sua mãe lhe dava quando o menino se entediava. Estavam indo para a casa de sua tia, a cerca de, segundo Miguel, muitos e muitos quilômetros de onde moravam.
Já haviam passado as férias lá antes, mas, nos últimos anos, era sempre sua tia quem se deslocava para a capital. Agora, Miguel mal se lembrava da cidadezinha para onde se dirigiam. De qualquer forma, estava ansioso por chegarem logo, para reencontrar sua prima Marília. As brincadeiras entre os dois sempre eram diversão garantida.
Durante o caminho, seu pai, dirigindo, acompanhava a música que tocava no rádio baixinho, enquanto sua mãe seguia falando, imaginando como seriam os dias que passariam na casa de sua irmã. Miguel, no banco de trás, após um tempo, já havia brincado com todas as opções de entretenimento apresentadas por sua mãe, sua barriga estava cheia e não sabia mais o que fazer. De tanto atormentá-la com perguntas como “Falta muito para chegar?” ou “Ainda está muito longe?”, sua mãe lhe recomendou: “Aprecie a paisagem, Miguel!”.
Aí estava algo que Miguel não pensara em fazer antes, e achou que talvez fosse interessante tentar.
A estrada seguia por uma região montanhosa, cortando os vales acompanhada de grandes morros ao seu redor. Era realmente uma paisagem bonita, e Miguel ficou surpreso com a quantidade de coisas que poderia observar de sua posição privilegiada pela janela do carro.
Como estavam longe da capital, não havia mais grande movimento na rodovia, e a família viajava tranquila, apenas seguindo o trajeto.
O sol brilhava no céu azul, com apenas uma ou duas nuvens passeando, mas não chegava a fazer calor. Era primavera, e as montanhas estavam cobertas de verde. A vegetação por ali, porém, não era tão espessa. Não havia árvores altas, pelo menos na margem da estrada; apenas arbustos e flores, inúmeras flores.
Miguel ficou encantado com a quantidade e diversidade das flores. Havia tantos tipos que o menino não sabia classificar, tantas cores! Elas pintavam as montanhas, pequenos pontos coloridos na grama verde. Como era possível que elas nascessem ali, de modo tão harmonioso? Elas eram tão diferentes, que pareciam escolhidas a dedo. O garoto não se conformava.
- Mãe?
- Sim, Miguel?
- Por que há tantas flores nas montanhas?
- Ora, meu filho, é primavera; as flores surgem quando acaba o inverno. Essa é uma região com um clima ótimo, e qualquer flor cresce bem por aqui.
- Mas, quem planta as flores, mãe?
Dessa vez, sua mãe começou a rir, assim como seu pai. Ela respondeu:
- Miguel, ninguém planta as flores! Elas nascem espontaneamente, conforme a natureza mandar! – E, ainda rindo – Onde já se viu? Quem seria capaz de encher todas essas montanhas com flores, menino?
E seus pais continuaram a conversa entre eles, às vezes ainda rindo das ideias originais que seu filho tinha.
Porém, Miguel ficou com o assunto na cabeça. Não conseguia admitir que todas aquelas flores haviam nascido espontaneamente. Ele sabia que a natureza era perfeita; mas, em sua opinião, aquelas montanhas estavam decoradas demais para serem obra do acaso.
Durante o resto da viagem, para surpresa de seus pais, o garoto permaneceu quieto, sem atormentá-los com perguntas de qualquer tipo. E, para Miguel, o tempo passou rápido, a ponto de ele quase não se dar conta de que estavam deixando a estrada e entrando na cidade.
A cidade era bem desenvolvida, apesar de pequena. Enclausurada no meio das montanhas, possuía uma vista incrível, pela qual recebia muitos turistas durante o ano, principalmente nas férias. A casa da tia de Miguel ficava no sopé de uma dessas montanhas, coisa comum no local. Uma das maiores distrações de Miguel e Marília era subir até o topo da colina e olhar a cidade de lá, de onde as casas pareciam de brinquedo.
A noite se aproximava quando estacionaram o carro na entrada da casa da tia Luísa. Ela, acompanhada do marido, o tio Marcos, vieram logo dar as boas-vindas aos visitantes. Foi uma recepção calorosa, pois havia quase um ano que não se viam. Tia Luísa veio cumprimentar Miguel, e o garoto retribuiu seus afagos, mas sua atenção estava em outro lugar.
Encostada em uma parede próxima à porta de entrada da casa, com o rosto escondido pela timidez, estava uma menina de seus oito anos, com cabelos castanhos lisos na altura dos ombros. Ela usava um conjunto de short e camiseta rosa e branco e estava descalça, o sinal de maior liberdade em uma criança. Foi necessário que seu pai a chamasse para ir falar oi ao primo Miguel. Ela veio, olhando para baixo, e deu um abraço no primo. Dali, os dois já saíram correndo pelo quintal, pulando as pedras de decoração que formavam um caminho entre as plantas. As crianças são assim; em um segundo, toda a estranheza de se ficar um bom tempo sem falar com outra pessoa se desvanece, como se ainda ontem estivessem juntos a brincar.
Naquela noite, Miguel não aguentou muito, porém. Cansado da viagem, o garoto acabou cedendo mais cedo do que gostaria, e foi carregado por seu pai até o quarto onde iria dormir.
Ele acordou de manhã com um sol agradável tocando seu rosto, um sol suave e quente que lhe incentivou a pular da cama e sair à procura de Marília. A menina estava no jardim, brincando com uma boneca. Porém, ao chegar ao jardim, Miguel ficou deslumbrado por outra coisa: a montanha. Havia ali, também, muitas flores alegrando a paisagem. O garoto correu para a prima.
- Marília, você já notou as flores que nascem nas encostas das montanhas?
- As flores? – perguntou Marília, um pouco surpresa, - Sim, notei. Às vezes subo a montanha e pego algumas, para dar de presente a minha mãe. Por quê?
- Eu te explico – disse Miguel, com o ar de entendido que os garotos assumem ao ensinarem algo a uma menina, - Quando estávamos vindo para cá, fiquei pensando sobre essas flores. Como pode ser que elas nasçam assim, tão perfeitamente nas encostas das montanhas? Você consegue acreditar nisso?
Marília parecia não estar entendendo direito o que o primo estava dizendo.
- Acreditar no quê, Miguel?
- Que as flores nasçam espontaneamente!
- Mas, de que outra forma elas nasceriam? – insistiu a menina.
- Ora bolas! Alguém as planta!
Marília hesitou por um instante.
- Alguém planta as flores que nascem nas montanhas? – confirmou ela.
- Sim! Claro! Só pode ser! – gritou Miguel.
- Hmmm...
Diante do ar de dúvida da prima, Miguel tomou uma decisão:
- Eu acho que nós deveríamos tirar essa história a limpo.
- Como?
Miguel, olhando para o topo da colina, respondeu:
- Vamos fazer uma excursão de reconhecimento na colina. Vamos descobrir quem é o responsável por toda essa decoração!
Marília, apesar de ainda um pouco cética em relação ao assunto, começou a gostar da ideia. Afinal, uma excursão pela montanha lhe parecia bem empolgante.
- Ok, vamos! – aceitou ela.
- Vamos! – gritou feliz Miguel. – Precisamos nos preparar.
Miguel correu até sua bagagem e pegou uma mochila, onde enfiou vários objetos que ele julgou imprescindíveis para uma expedição montanhosa: uma lanterna, equipamento indispensável a qualquer garoto; um boné; um elástico; barrinhas de chocolate e, claro, alguns utensílios de jardinagem. Fechou tudo na mochila e partiu de encontro ao desconhecido.
- Vamos, Marília!
E Marília foi atrás.
Havia um portãozinho no fundo do jardim com saída direta para o sopé da montanha. Os dois saíram pelo portão e começaram a subir. Seus pais, acostumados a vê-los no topo da colina admirando a cidade, nem se deram conta da grande expedição posta em prática.
Marília e Miguel chegaram, de fato, até o topo da colina, de onde olharam para trás e viram as casinhas em miniatura. Então, pela primeira vez, voltaram seus rostos para os vales das montanhas e, dando as costas à cidade, iniciaram a caminhada pelo outro lado da colina.
Poucos passos depois, Miguel comentou:
- Veja quantas flores por aqui! Há flores amarelas, vermelhas, brancas, azuis! Grandes, pequenas, redondas, espetadas! Tenho certeza, Marília, estamos na pista certa. Vamos descobrir quem é o dono deste jardim todo!
Realmente, conforme se afastavam da cidade, a quantidade de flores aumentava, como se fossem um tesouro escondido, à vista apenas daqueles que se aventuravam por terrenos mais reservados. Marília sentia vontade de colhê-las, mas as flores eram tão belas no chão, vivas, que a menina apenas apreciava o espetáculo.
De repente, os garotos viram um movimento por perto, como se alguém estivesse cavoucando a terra.
- Marília, venha, algo está acontecendo ali! – gritou Miguel, empolgado. Os dois correram naquela direção. Quando foram chegando perto, diminuíram o passo, para não assustar quem quer que fosse. Então, viram pequenas quantidades de terra sendo jogadas para cima, e Miguel imediatamente lançou a Marília um olhar de triunfo, querendo dizer “Eu sabia!”. Devagarzinho, se aproximaram mais ainda.
Mas, quando conseguiram um ângulo de visão melhor, Miguel ficou decepcionado. Era apenas um coelho fazendo sua toca!
- Essa não! – disse ele, contrariado. – Quem diria... Uma pista falsa! Mas, vamos continuar nossa missão. E continuaram a caminhada.
Andar pelos vales das montanhas era uma atividade extremamente agradável. Coberto apenas por um capim alto e fino, o solo era estável e regular, tornando os passos fáceis e firmes. Marília caminhava com os braços ligeiramente afastados do corpo, com as mãos abertas, acariciando o capim com seus dedos finos.
- Miguel, - perguntou ela, após um longo período em que os dois apenas andavam, sem conversar – será mesmo que vamos encontrar alguma coisa neste nosso passeio?
- Claro, - respondeu Miguel, com convicção, - é só seguirmos em frente!
Porém, após muito avançarem por entre as montanhas, os garotos ainda não haviam encontrado nada. Sentiam-se cansados e com fome. Por isso, sentaram-se em algumas pedras grandes e comeram os chocolates de Miguel. Havia, próximas a eles, várias florzinhas lilás, delicadas como borboletas. Já devia ser mais de meio-dia, e a busca sem resultados começava a ser frustrante. Miguel, olhando o rosto desesperançoso de Marília, disse:
- Talvez seja melhor nós voltarmos, Marília. Andamos muito, estamos correndo o risco de nos perder. Não podemos seguir em frente por mais tempo, caso contrário seremos surpreendidos pela noite e estaremos perdidos. Vamos voltar!
Porém, essas frases foram ditas com tanto pesar, que Marília se compadeceu de seu primo. A menina, então, falou:
- É verdade, Miguel, já avançamos bastante, e sem resultados. Mas vamos seguir um pouco mais; meia hora, que seja. Quem sabe? – disse ela, com um sorriso. Miguel sorriu também, e os dois se puseram a andar.
Miguel possuía um relógio de pulso, digital, vermelho, o qual havia ganhado de seu pai. Passada meia hora, o garoto lançou a Marília um olhar significativo. A menina entendeu o recado, e encolheu os ombros. Nesse momento, porém, ela reparou em algo diferente no chão. Havia, ali, algumas flores caídas, soltas, com as raízes expostas, como se tivessem acabado de ser arrancadas, ou estivessem à espera de que alguém as plantasse.
- Veja, Miguel, essas flores! – gritou ela.
Miguel imediatamente foi até as flores e segurou-as nas mãos, analisando-as.
- Parecem ter sido arrancadas agora! Ainda estão vivas, mas não por muito tempo. Vamos, Marília, me ajude! – e, retirando da mochila os utensílios de jardinagem, começou a cavar buracos na terra.
Eram cerca de seis ou sete tulipas, vermelhas e amarelas. Suas raízes eram relativamente longas, e Miguel e Marília cavaram buracos fundos o suficiente para não amassá-las. Cuidadosamente, dispuseram cada uma das flores em seus respectivos buracos, tampando-os depois. Por último, Miguel retirou da mochila sua própria garrafa de água e regou o canteiro.
Eles se levantaram, então, e apreciaram sua obra. As tulipas estavam ali, altivas, alegres. Era uma pequena contribuição de Miguel e Marília à paisagem das montanhas. Marília olhou para o primo e disse:
- Bem, acho que agora podemos ir!
- Sim, tem razão. Vamos embora – concordou Miguel.
Juntaram todas as coisas e começaram o caminho de volta. Nesse instante, no entanto, ouviram uma voz logo a suas costas:
- Ei! Garotos! Já acabaram o serviço?
Marília e Miguel, surpresos, viraram-se. Então, depararam-se com a figura de um senhor já bem velhinho, magro, com os cabelos brancos saindo de baixo de um chapéu surrado, marrom. Suas roupas também eram surradas e, assim como suas botinas, estavam sujas de terra. Os dois garotos, pasmos, não sabiam o que dizer.
- E então? – continuou o senhor, - Não vão me ajudar mais? Ainda há muitas tulipas a serem plantadas, e eu nem comecei o trabalho com as margaridas!
Marília finalmente conseguiu articular uma pergunta:
- Quem é o senhor?
- Eu – respondeu o velho, - sou o jardineiro das montanhas. Quem mais eu poderia ser? – e um breve sorriso se esboçou em seu rosto.
Miguel parecia encantado.
- Então é o senhor quem planta todas essas flores? – disse.
- Sim, sou eu. E levo muito tempo neste trabalho. Forrar todas essas montanhas com flores não é tarefa fácil. Existem inúmeros tipos, inúmeras combinações a se fazer. E eu trabalho todos os dias, plantando, podando, regando. É o trabalho de uma vida, meus amigos. E, por isso, não dispenso ajuda quando esta se apresenta. Então, vamos continuar?
Os dois imediatamente saíram atrás do velho, que começou a subir a colina em que estavam. Dali, viram uma carriola, na qual descansavam várias flores, prontas para serem plantadas.
- Vamos até aquelas flores do campo amarelas. Vou plantar ali alguns narcisos.
Miguel e Marília ajudaram-no a cavar os buracos. O jardineiro dispunha as flores com delicadeza, com o cuidado de um pai. Dos narcisos, passaram para as gérberas; das gérberas para os lírios, dos lírios para as violetas... Miguel via seus pensamentos se tornarem realidade. Aos poucos, aquelas encostas das montanhas iam mudando de cara conforme os três seguiam plantando as flores; eram como pintores adicionando tinta a um quadro, transformando a paisagem.
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Ilustração: Tácia Soares |
Passou-se um longo tempo, até que a carriola ficou vazia de flores. Miguel, Marília e o velho olharam a sua volta e apreciaram o resultado de seu trabalho.
Porém, Marília também olhou para o céu e notou que o azul se tornava mais escuro. A noite chegava.
- Miguel! Já é quase noite! Como faremos, agora, para retornar para casa? Nem sabemos onde estamos, apenas sabemos que há um longo caminho a percorrermos...
Miguel fez uma expressão apreensiva. No entanto, antes que pudesse responder qualquer coisa a Marília, o jardineiro falou:
- Não se preocupem, garotos. Vocês me ajudaram em meu trabalho; agora, está na hora de eu lhes ajudar. E o velho, então, dispôs-se a andar, como se soubesse o caminho da casa da tia Luísa, como se nem precisasse enxergar e apenas sentisse o chão com o toque de seus pés.
No trajeto, dezenas de perguntas se formavam na cabeça de Miguel. Não podendo resistir à curiosidade, ele disse:
- Quando o senhor começou este trabalho?
- Há muitos anos, garoto. Desde minha infância. É, como eu disse, o trabalho de uma vida.
- Mas, o senhor mora aqui nas montanhas? O senhor tem uma casa? – perguntou Marília.
- Tenho, tenho uma casa. Minha casa fica nas montanhas. Porém, ninguém sabe onde fica. As pessoas não se dispõem a vagar por aí pelos vales, não importa quão floridos eles sejam. Essa é uma paisagem geralmente apreciada de longe. E, além do mais, minha casa é tão pequena que poucos conseguiriam encontrá-la no meio de tanto capim.
- Mas, será que, se nós quiséssemos, poderíamos visitá-lo algum dia? – perguntou Miguel, hesitante. Marília olhou para o jardineiro, ansiosa pela resposta.
- Sim, vocês podem me visitar – respondeu o velho. – E nem precisam ir até minha casa. Basta andarem por aí, pelos campos, pelas flores, que nós nos encontraremos.
Um lampejo de alegria iluminou o rosto de Miguel e Marília. Logo depois, porém, algo fez Miguel ficar sério e pensativo. Olhando adiante, o garoto pôde distinguir as luzes da cidade; estavam chegando. Por mais alguns instantes, todos se mantiveram em silêncio, vendo os pontos de luz ficarem cada vez maiores. Finalmente, puderam distinguir o formato das casas e Miguel percebeu que sua jornada estava acabando. Alcançaram o topo da última colina, de onde enxergavam as sombras das árvores no jardim de tia Luísa.
- Bem, garotos, parece que vocês estão entregues. Obrigado pela ajuda!
- Obrigado! – retribuíram os dois. Miguel, então, disse:
- Senhor, posso lhe fazer uma última pergunta?
- Claro, mas seja breve! Tenho que ir também para minha casa, e me preparar para mais um dia de plantio amanhã!
- Tudo bem. – concordou Miguel, continuando - Só gostaria de saber por que o senhor começou a fazer isso... a plantar as flores, eu digo.
O velho jardineiro encarou Miguel e Marília por uns instantes. Depois, virou as costas para a cidade, da mesma maneira que os dois meninos haviam feito mais cedo naquele dia, e olhou para os campos das montanhas. Finalmente, respondeu:
- Porque, garotos, a natureza é perfeita e dá conta de tudo. Porém, o trabalho é duro e, por isso, ela não dispensa ajuda, quando esta se apresenta.
E, dizendo isso, o velho jardineiro desceu a colina, por entre as flores de seu jardim.